Denis Lerrer Rosenfield*: A política criminosa
- O Estado de S. Paulo
A prisão do senador Delcídio Amaral, ordenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e depois confirmada pelo Senado Federal, suscita uma série de questões que dizem respeito ao desenlace da atual crise. Agora um fato novo vem à tona. Ele retoma com força o problema de um governo que já acabou, embora a presidente relute em reconhecer esse fato, que se impõe a todos os que pretendem ver a realidade. Parece que o País petista conseguiu ir além de qualquer limite, como se impunidade e corrupção fossem “regras” que devem ser seguidas.
O que imediatamente salta aos olhos é uma imensa crise de valores do mundo político e de setores do empresariado, em franca dissonância com os anseios da sociedade brasileira. O lulopetismo estabeleceu a corrupção como modo de governar, fazendo da impunidade um tipo de conduta que deveria ser seguido por todos. Os valores estão se esfacelando, como se não fossem mais fatores essenciais de coesão social.
Não seria, pois, de espantar o descrédito que hoje se abate sobre a classe política, amplificado pelo fato de o PT, outrora “partido da ética”, simplesmente afirmar que essas coisas são “naturais”. Imaginem as pessoas que vivem com poucos salários mínimos ou estão desempregadas vendo-se diante de um quadro de corrupção que consome bilhões de reais. A indignação e a desconfiança são, então, mera consequência.
A política petista pertence hoje à crônica policial. Uma política desprovida de qualquer pudor e sem nenhum valor moral tomou conta da cena pública, como se tudo fosse válido para a conservação do poder. Limites éticos foram simplesmente desconsiderados. Ser “progressista” significaria nada mais do que ser conivente com o crime, incentivador deste, em nome dos “valores” superiores da esquerda e do socialismo.
Ora, o resultado de tal política carente de moralidade é o crime como modo mesmo de governar. A política tornou-se criminosa por sua completa ausência de ética, uma política sem freios de espécie alguma. Note-se que os escândalos da época petista simplesmente se repetem e vão ganhando novas dimensões. O senador Delcídio Amaral somente escancarou o caráter propriamente mafioso dessa política, com a franqueza de uma conversa voltada para a obstrução da Justiça, que possibilitaria a fuga de um profundo conhecedor da política criminosa. Ele não seria o único beneficiário.
O senador petista procurou salvar-se e salvar o seu banqueiro financiador. A presidente da República foi citada por estar supostamente envolvida no escândalo da compra da usina de Pasadena. Delcídio pensou sobretudo nele, porém sem esquecer os desdobramentos políticos dos casos em que esteve envolvido. A política criminosa está se aproximando da própria presidente, além de já ter atingido o ex-presidente Lula, por intermédio de pessoas próximas, como o empresário/amigo José Carlos Bumlai. Num país que primasse pela moralidade pública e pela acepção mais elevada da política, a presidente já teria renunciado e seu criador, desde já, estaria prestando contas à Justiça.
Nesse contexto de política criminosa, não deixa de surpreender a votação no Senado – por 59 votos a 13 e uma abstenção – pela manutenção da prisão de Delcídio. Isso porque vários desses senadores são objeto de investigações em curso no próprio STF, investigações essas que podem vir a comprometer o mandato de cada um deles.
Ocorreu um fenômeno semelhante quando do impeachment do ex-presidente Collor, em que parlamentares com problemas com a Justiça terminaram por votar favoravelmente à sua saída. Não o fizeram por virtude ou por moralidade, mas premidos pelas circunstâncias, ciosos de conservar a sua própria imagem, por mais desfigurada que estivesse. Há aí uma espécie de contribuição que o vício paga à virtude.
Isso, contudo, só foi possível graças à ampla repercussão obtida pelo áudio da gravação nos diferentes meios de comunicação. Criou-se um ambiente público de maior intolerância com a corrupção e com os políticos, fazendo os senadores pensar duas vezes antes de tentarem empreender a absolvição do parlamentar sul-mato-grossense.
Senadores comprometidos com a moralidade, seja em foro íntimo, seja por imposição das circunstâncias públicas, terminaram se decidindo pelo voto aberto nesse julgamento. Trata-se, aqui, de uma condição da maior relevância, na medida em que obriga os senadores a uma prestação de contas pública de seus mandatos, devendo se justificar perante os seus eleitores. Nesse sentido, a votação preliminar pelo voto aberto foi da maior importância, oferecendo aos cidadãos brasileiros uma transparência política que contrasta tão flagrantemente com o caráter “oculto” da política criminosa.
Um dado particularmente surpreendente de todo esse episódio foi a nota da presidência do PT, na pessoa de Rui Falcão, recusando solidariedade ao senador. João Vaccari Neto, Delúbio Soares, José Dirceu e João Paulo Cunha, entre outros, são considerados “guerreiros do povo brasileiro” por terem cometido atos criminosos em nome do partido. Reconheceram a política criminosa por eles mesmos inventada. Ora, o senador Delcídio nada mais fez senão o que os outros também fizeram, repetindo um comportamento-padrão, em que os interesses partidários e pessoais se misturam tão intimamente. Resta saber se permanecerá calado, sofrendo em sua solidão. Se falar, concluirá o trabalho de desmoronamento da República petista.
O ex-presidente Lula não ficou atrás. Ao tomar conhecimento da gravação feita pelo filho de Nestor Cerveró, chamou o senador de “imbecil”, porque teria feito uma “burrada”. Não fez nenhum juízo moral, contentou-se em deixar claro que Delcídio não seguiu a habilidade própria da política criminosa, baseada no acobertamento. Considerou-o não inteligente, e não como imoral, injusto ou criminoso.
Eis o seu padrão da “política”. O Brasil é o que menos importa para ele e para os seus companheiros.
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*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS