ENTREVISTA: Uma TV não derruba mais presidentes

22/11/2019 20:15

Uma TV não derruba mais presidentes 

Luís Antônio Giron – Site da Revista IstoÉ

O empresário paulistano Amilcare Dallevo Jr., de 61 anos, começou a carreira na área de tecnologia da informação. Desenvolveu softwares de telefone para uso em enquetes. Em 1999, comprou o espólio da rede Manchete e fundou a Rede TV!, em parceria com Marcelo de Carvalho, vice-presidente da organização. Mais uma vez, Dallevo apostou na interação do público e na alta tecnologia. Como resultado, a Rede TV! conta mensalmente com uma audiência de 100 milhões de espectadores na televisão aberta e 1 bilhão de visualizações no YouTube, onde é campeã. Ele comanda um império de 1,2 mil funcionários, cinco emissoras e 45 afiliadas. Nesta entrevista,revela como fundou seu canal e lida com as diversas áreas da empresa, como entretenimento, publicidade e jornalismo. Ciente da influência que possui, defende a equidistância para evitar a polarização política e afirma que os canais de TV já não depõem presidentes, como no passado.

Você despontou como executivo quando apostou em novas tecnologias da telefonia. O que você aprendeu com a experiência?

Cursei engenharia eletrônica voltada para área de software na Poli da USP, mas trabalhava com computação desde os 14 anos. Nos anos 1990, abri a Tecnet, uma empresa de software, para desenvolver software na intersecção das áreas de telecom e tecnologia de informação.

Como você se envolveu com a televisão?

Em 1994, nós fazíamos muitos trabalhos para a estatal Embratel, que tinha sido procurada pela TV Globo para desenvolver um software para o público no carnaval. O telespectador discava para dar uma nota para uma escola de samba e, em tempo real, o sistema recebia a informação, calculava a média e passava o placar no vídeo. O brasileiro adora participar. Assim, criamos em 1992 toda a plataforma tecnológica para o programa “Você decide”, em que o espectador escolhia o final pelo telefone. Criei então o serviço telefônico 0900. Ainda nos anos 1990, passamos a alugar espaços de televisão para produzir programas no intuito de receber ligações e, assim, nasceu a Ômega Produções. Foi nessa época, em 1999, que compramos a concessão da rede Manchete.

Como foi herdar os passivos trabalhistas da Manchete?

Como estamos no Brasil, vieram milhões de ações trabalhistas de todo tipo. E assim começou a nossa sina. Demoramos 15 anos para resolver o problema. A rigor, a Rede TV! tem cinco anos. O resto do tempo foi para resolver os pepinos. A despesa foi grande, associada ao chamado “Custo Brasil”.
As inovações têm origem na sua formação tecnológica?

Minha cabeça sempre foi disruptiva. Um negócio que alguém já fez não me dá vontade de fazer de novo. Se você quer que eu faça alguma coisa, é só dizer que eu não vou conseguir. Foi assim que surgiram soluções criativas na produção.

Que análise você faz da televisão em relação aos avanços tecnológicos?

Hoje a gente não se encara como uma televisão, mas uma plataforma de comunicação, com a qual eu posso entregar um anúncio na TV, no digital, no portal, em toda parte. Isso fez com que a Rede TV! chegasse em 2018 ao quarto lugar de acessos no YouTube, com 4 bilhões de visualizações. Não adianta se agarrar à televisão. Hoje você tem um número cada vez maior de mídias. Temos que estar em todas elas, e não nos agarramos ao que era nos anos 1980.

Qual o papel da emissora?

Quando a gente tem uma concessão pública, você deve respeito e tem missões. Uma delas é informar com qualidade. No nosso jornalismo, a gente trabalha para ouvir todos os lados. Isso gera credibilidade. Eu e o [diretor de jornalismo] Franz [Vacek] temos batalhado para abordar os grandes temas. Isso porque o jornalismo enveredou pela picuinha que dá lide. Temos recebido elogios por causa da postura. Até os entrevistados ficam satisfeitos, pois não vão cair numa armadilha.

Como você analisa os desafios do jornalismo em relação ao que está acontecendo no Brasil, como a bipolarização política?

Nunca houve tanta polarização no Brasil. Eu acho bacana, pois indica um processo de crescimento. Toda vida eu ouvi que brasileiro não se interessava por política, só se interessa por futebol. Mas hoje todo mundo sabe quem são os onze ministros do STF, mas não sabe escalar a seleção brasileira. É uma novidade. O motorista de táxi de hoje sabe falar sobre a votação da segunda instância. Há dez anos, ninguém estava nem aí. É uma mudança positiva. Claro que há fatos escabrosos como aquele negócio da Jovem Pan — um acaba dando um soco na cara do outro. A discussão política já está driblando o futebol para se aproximar da luta livre. Mas são exceções boas até, diante de uma coisa maior, que é o envolvimento político da população como um todo.

Como você vê a diferença entre os canais de televisão tradicionais, que oferecem uma visão unificada, e a mídia alternativa no YouTube, dedicada à militância.

Temos feito os debates próximos às eleições e damos a mesma oportunidade para todo mundo. Um debate entre candidatos à presidência. Todos merecem respeito e espaço para expor suas ideias, você concorde com elas ou não. É isso que buscamos em nossos debates. Foi uma cobertura isenta, tanto que candidatos de várias tendências elogiaram nossa estrutura. Todos tiveram o mesmo espaço e o tempo.

O presidente Jair Bolsonaro tem atacado a TV Globo e diminuindo as verbas publicitárias para ela em benefício das outras. Você está pronto a responder a isso?

Eu não acho que tenha que guerrear com a Globo. De qualquer forma, acho que está sendo muito melhor, porque a lei do marketing ensina que a audiência que a emissora tem corresponde à fatia de faturamento que deve possuir. No mundo inteiro é assim. No Brasil, isso não acontece. Dizem que o governo pode mudar as coisas, mas a verba governamental não é significativa, se comparada com o total do mercado, algo como 5% da verba. Mas é um grande passo que o Brasil se adapte ao mundo, onde o share de faturamento corresponde à audiência da emissora. Se a Rede TV! tem 10 % de audiência, merece mais ou menos 10% da verba publicitária do governo.

Por que acontece a distorção?

A Unesco publica anualmente o relatório IDM, o índice de desenvolvimento da mídia. O documento visa a verificar a situação da mídia em determinado país para incrementar a pluralidade. Como se dá a divisão? Os governos devem ter um fator de conversão para destinar verbas a quem é menor, de modo a aumentar a pluralidade das comunicações. O governo está indo nesse sentido.

A Globo sempre se beneficiou com as verbas publicitárias do governo. Qual a sua opinião sobre esse critério?

De janeiro até novembro, a TV Globo deteve 37% do share do mercado e recebe 80% das verbas. É muita diferença. A mídia técnica não existe no Brasil. Existe a mídia não técnica. Se alguém ganha mais do que a audiência que tem, os demais recebem menos. Quanto mais próximo da mídia técnica se chegar, podemos contar com mais televisões, com a melhor divisão dos campeonatos esportivos e de outras coisas importantes para a pluralidade e o desenvolvimento da mídia no Brasil. Há uma série de campeonatos de outros esportes que não passam em lugar nenhum. Se nenhuma TV consegue transmitir jogos de basquete, por exemplo, o esporte não vai se desenvolver na juventude brasileira. A pluralidade é importante para o Brasil.

A TV a cabo está fadada a diminuir de tamanho?

Os canais de assinatura vão ter que recalcular os preços. A TV aberta é popular no Brasil porque é gratuita e oferece mais que os canais pagos.

As redes sociais alteraram a forma de se comunicar. Como você encara esse fato?

Temos que estar atentos e fornecer interatividade e alternativas. O ser humano precisa do entretenimento que não exija pensar. Na década de 90, quando os computadores se popularizaram, os americanos passavam o dia jogando paciência, pois não precisavam pensar. As redes sociais ocuparam o tempo do jogo da paciência.

As grandes emissoras de televisão vão sobreviver?

Em termos de conteúdo de streaming, o mundo terá só cinco serviços: Apple, Amazon, Disney, Warner e Google. Há ainda a Netflix, que alguém vai comprar, já que se trata de uma empresa que vale apenas 10% em relação às concorrentes. No Brasil, as emissoras vão sobreviver. É o mesmo que aconteceu nos anos 1950, quando pensavam que o rádio fosse acabar por causa da televisão. Não acabou. O rádio ainda tem seu espaço.

Mas como sobreviver?

Com o conteúdo. “Content is the king”, dizia-se nos anos 1960. Se você tem um jornalismo atual, esportes e associação com serviços de streaming, o pessoal vai querer assistir. O espectador quer sentar à noite, pedir uma pizza e ver uma coisa sobre a qual não precisa pensar.

A exemplo da Globoplay, por que vocês não lançaram a Rede TV! Play?

Porque ninguém tem catálogo suficiente para manter um serviço desse tipo. A Globo tem o maior catálogo no Brasil, com produções maravilhosas. Mas, mesmo assim, é pouco. Você prefere pagar R$ 23 para o Netflix, R$ 29 para o Globoplay ou R$ 9 para a Amazon? As emissoras brasileiras deveriam entregar conteúdo aos serviços mundiais.

Como manter a reputação de um canal nestes tempos sombrios de fake news?

Com a proliferação das mídias sociais, ficou fácil espalhar mentiras. Isso porque existe a necessidade de furo jornalístico. Por isso, a gente preza por checar as fontes, a informação, as matérias. Quando aconteceu a delação do Joesley Batista, circulou o boato da renúncia de Temer. Não demos nada, pois não tivemos tempo de apurar. A redação pressionou, mas não entramos na onda. A solução é conferir diuturnamente a veracidade da fonte junto à redação.

Hoje, uma emissora de televisão é capaz de derrubar um presidente da República?

Uma emissora já fez isso, quando derrubou o Fernando Collor de Mello. Mas não derrubou Michel Temer.

E derruba o Bolsonaro?

Não, menos por causa dele do que pelo poder relativo das emissoras. Antigamente, a Globo tinha 90% de audiência. Hoje, tem 37%. Se um presidente da República fizer uma coisa que seja reprovável de modo que todas as emissoras comecem a noticiar o fato, acho que sim, pode haver impeachment. Mas uma TV, qualquer que seja, não derruba mais presidentes.

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