Mais formigas, menos cigarras - Artigo

22/10/2015 20:54
Mais formigas, menos cigarras
*Por Rodrigo Tellechea
 
O mérito de uma fábula é simplificar paradigmas sociais em historietas singelas que contêm intenso caráter moralizante. Em oposição aos textos técnicos, a narrativa em prosa tem o potencial de atingir um número elevado de leitores e transmitir, em pequeno intervalo de tempo, profundos conteúdos instrutivos.
 
“Passamos os últimos 14 invernos consumindo desenfreadamente os alimentos estocados a muito custo durante os verões anteriores”
 
Ao refletir sobre o Brasil, na fábula da formiga e da cigarra, atribuída ao grego Esopo, cujo legado literário remonta ao século VII a.C. A obra foi recontada pelo francês Jean de La Fontaine no século XVII e ganhou fama ao ser reproduzida cinematograficamente em curta-metragem da Disney na primeira metade do século XX. Em síntese, narra a história de uma indolente cigarra que canta despreocupadamente durante o verão, enquanto observa uma formiga trabalhar arduamente para acumular provisões para o inverno que se aproxima. Chegada a estação do frio, a cigarra, desamparada e sem mantimentos, busca abrigo na morada da formiga, que lhe pergunta o que fez durante o verão para se preparar para as baixas temperaturas vindouras. Cantei, respondeu a cigarra; então, agora dance, rebateu a formiga, negando-lhe abrigo efusivamente.
 
Duas são principais lições que podem ser extraídas da fábula: a primeira refere-se à relação entre esforço e recompensa, isto é, se a formiga acumulou mais recursos em razão de ter trabalhado durante o verão, enquanto a cigarra preferiu divertir-se a trabalhar, sem acumular nada, as desigualdades existentes entre elas com a chegada do inverno são maiores e diretamente proporcionais às escolhas realizadas. A segunda relaciona-se ao fato de que, desconsiderados aspectos aleatórios, nosso futuro depende do trabalho do presente e de planejamento de médio e longo prazo para alcançar determinado fim.
 
Ambos os ensinamentos são amplamente aplicáveis ao Brasil e determinantes para o caminho que iremos trilhar nos próximos anos. Porém, a reflexão que proponho tem cunho mais realista, quase machadiano. Se fôssemos identificar o Brasil com uma das personagens da fábula, seríamos a formiga ou a cigarra? A despeito de a pergunta ser direta e objetiva, a resposta não o é. Na verdade, a tentativa de enquadramento evidencia uma externalidade negativa enfrentada por todos que tentam, de alguma forma, planejar suas ações e decisões empresariais no nosso confuso e cambiante ambiente institucional e remonta, de certa maneira, à perspicaz constatação de Antônio Carlos Jobim: “O Brasil não é para principiantes”.
 
Mas, então, qual a relação entre o futuro do Brasil e as personagens da alegoria infantil? Minha prematura conclusão é no sentido de que não temos uma identidade segura e com traços bem definidos. Sofremos de uma espécie de transtorno de personalidade que poderia ser caricaturalmente descrito da seguinte forma, tomando-se como base de partida os dias da semana: durante a segunda, a terça e a quarta-feira somos uma dedicada formiga que trabalha arduamente para alcançar a meta final originalmente traçada. Ao final do terceiro dia, após cumprir os objetivos parciais pré-estabelecidos, a formiga transmuda-se em uma indolente cigarra e decide folgar durante a quinta e a sexta-feira para exercitar ininterruptamente seu canto nos bares da cidade. Após a exaustiva e divertida rotina (e um tanto quanto indisposta) decide repousar no sábado e no domingo para novamente se transformar na formiga e iniciar o árduo trabalho da semana seguinte.
 
Adotando uma perspectiva otimista, o Brasil é uma espécie de formiga que sofre do complexo de cigarra – alguns diriam que é uma cigarra que tem jornadas de formiga –, isto é, sabe da importância do trabalho, mas não abandona a boemia fora de hora. Compreendemos a relevância do planejamento, envidamos esforços, suamos a camisa em discussões e debates, traçamos metas, mas não conseguimos realizá-las adequadamente nos prazos avençados. Nossos comportamentos têm um desvio padrão constante que nos afasta do caminho originalmente traçado; somos como o pródigo que não consegue se afastar definitivamente do vício que – no nosso caso – se materializa no gasto imoderado e no paternalismo crescente e irresponsável do Estado.
 
Sofremos do mal das reformas institucionais paliativas e parciais e das obras inacabadas, mas, mesmo assim, vociferadas e propagandeadas em alto e bom tom como se finalizadas estivessem, como se a retórica do discurso desafiasse a dura realidade dos fatos. Vangloriamo-nos do trabalho cumprido antes de ele ter sido devidamente auditado ou gerado frutos reais presentes. Orgulhamo-nos dos resultados atingidos sem nos preocupar em buscar a prova real ou investigar superfaturamentos ou índices de eficiência das realizações. Nossa matemática está cada vez mais ideológica e menos científica e pragmática. O saldo negativo disso tudo está evidenciado na pífia classificação do país nos mais diversos rankings internacionais (seja qual for o indicador ou critério pesquisado). Porém, ao invés de aceitar os resultados e fazer o tema de casa, optamos sistematicamente por criticar as instituições pesquisadoras com argumentos cada vez mais estapafúrdios e equivocados.
 
Votando à fábula, passamos os últimos 14 invernos consumindo desenfreadamente os alimentos estocados a muito custo durante os verões anteriores. Agora a despensa está vazia, e um longo e rigoroso inverno se aproxima (e parece que dessa vez nem mesmo o Cristo Redentor está disposto a estender seus braços para nos acalentar). Ainda que o resultado das eleições tenha apontado para a manutenção do status quo, a prosperidade do nosso futuro depende de uma brusca mudança de rumo, quiçá de identidade: precisamos agir mais como formigas e menos como cigarras. Mas essa mudança não estiver na nossa pauta, sejamos minimamente coerentes em reconhecer nosso caráter dúplice e aceitar as consequências e as responsabilidades resultantes da nossa faceta crescente de cigarra (que não serão pequenas).
 
Pelo menos resta-nos celebrar que, enquanto tivermos liberdade plena, a decisão, esteja ela certa ou errada, ainda caberá individualmente a cada um de nós. No entanto, a responsabilidades decorrentes dessas escolhas também chegarão.
 
 
Fonte: Instituto Millenium