O ano que acaba e o que começa - CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SP
Nos anos 1950, na Itália, circulava uma piada.
Um padre transita de bicicleta pela praça de um vilarejo e quase é atropelado por um caminhão. Um guarda de trânsito, que é membro do Partido Comunista, comenta: "Padre, você teve sorte, hein?". E o padre: "Não foi sorte, não. É que você não consegue enxergá-lo, mas aqui comigo, na garupa, sempre vem Deus". O guarda, triunfante, tirando do bolso seu carnê de multas: "Dois numa bicicleta? Lamento, padre, esta é uma infração grave".
Penso nessa piada a cada vez que alguém me diz que, na sua vida, algo está certo "graças a Deus".
Tudo isso para dizer que a nossa vida e o estado do mundo dependem de nós —com um pouco de sorte, eventualmente.
Nestes dias, os jornais e a televisão nos oferecem as tradicionais revisões conclusivas do ano que passou. Todos gostamos de um balanço. Qual é, para mim, o fato dominante de 2015? (Não é Eduardo Cunha; lamento, mas, à vista do que é para mim o fato do ano, a política nacional não passa de um pastelão ruim).
Neste ano, mais de um milhão de refugiados foi da Ásia e da África para a Europa —metade deles da Síria.
Admiro especialmente a coragem dos que fugiram com os filhos pequenos. Graças a eles, reaprendi o que significa ser humano: o medo de morrer e de destinar seus filhos à morte não bastou para pará-los. Eles me lembraram assim que, para os homens, existem coisas mais importantes do que a vida (por ex., a liberdade, a dignidade, a honra).
Três corolários do fato do ano.
1) Os europeus terão que decidir quem eles querem ser. Se o que os define for um conjunto de religião, costumes, tradições e língua, eles só poderão se sentir ameaçados pelos recém-chegados. Se eles se definirem pelos valores que eles mesmos inventaram —liberdade, igualdade e solidariedade—, eles, portanto, ajudarão e acolherão os recém-chegados.
Ou seja, na resposta aos refugiados, os europeus decidirão quem eles são e seu próprio futuro.
2) Os que chegam à Europa fogem de seu país e de seus costumes. Essa mudança, que eles desejam, não deixa de ser um conflito interno dilacerante. Será que eles e os descendentes deles, mesmo se forem acolhidos, conseguirão um dia se sentir em casa na Europa? Ou, obcecados pelo sentimento de ter traído suas origens, ficarão numa mistura eterna e contraditória de inveja e sentimento de exclusão?
3) O fundamentalismo do Estado Islâmico, do qual muitos refugiados fugiram, foi de grande ajuda para reconhecer que nossos inimigos são os que querem converter o mundo, impor sua fé. Tenho igual respeito por evangélicos, ateus, muçulmanos, satanistas ou adoradores do sexo selvagem —contanto que ninguém sonhe em exigir que todos sigam seus preceitos.
O fato dominante do ano tem dois cartões-postais. Um vale para o ano passado; o outro, para o ano que começa amanhã.
Há a imagem do pequeno Alan Kurdi, de dois anos, deitado de bruços entre a água e a areia de uma praia da Turquia. A fotografia comoveu o mundo. Na primeira vez que eu a vi, meu desespero não foi só pelo corpo inerte do pequeno Alan; imaginei que o policial estivesse escrevendo algo, uma multa por sujar as praias da Turquia? Uma lista dos corpos encontrados naquele dia? A burocracia de um gesto que imaginei me revoltou. Soube logo que o policial estava aos prantos.
Depois de Alan, dezenas de crianças se afogaram na tentativa de atravessar o mar e chegar à Grécia, à Turquia, à Itália.
E há uma outra foto que me arranca as lágrimas; é de Tyler Hicks, e o "New York Times" a escolheu para introduzir as fotos do ano. A imagem faz parte de uma série sobre a chegada de um grupo de refugiados à ilha de Lesbos, na Grécia. Há uma espécie de justiça histórica, aliás, pela qual, fugindo do horror do Estado Islâmico, os refugiados encontram salvação na ilha onde nasceu Safo e que é ainda hoje um lugar de peregrinação para os homossexuais, ou seja, para aqueles que o fundamentalismo condena à morte.
Na fotografia, vemos um menino, com uma salva-vidas a tiracolo, como se ele estivesse a salvo só pela metade.
Ele adotará e será adotado pelo novo país, seja ele qual for? Não sabemos o futuro, mas, naquela praia, o olhar dele é vivo, cheio de sonhos e de alegria.
Meu voto para o ano que vem é que a gente consiga pensar e agir à altura da esperança estampada na cara deste menino.