Revista Oeste: PARA QUE CORRER TANTO?

07/02/2022 03:14

PARA QUE CORRER TANTO?

Foto: Mikhail Leonov/Shutterstock

A audição ansiosa é o novo mal da nossa sociedade permanentemente apressada

Por Kaike Nanne – Revista Oeste - Foto: Mikhail Leonov/Shutterstock

Um novo distúrbio veio juntar-se à extensa lista de patologias contemporâneas: a audição ansiosa. As pessoas estão cada vez mais ouvindo podcasts e mensagens em áudio no WhatsApp em velocidade 2 — isto é, com a metade do tempo da gravação original. O sujeito escuta com a aparência de normalidade as últimas notícias do mercado financeiro narradas como aquelas advertências de efeitos colaterais no final de propagandas de remédios no rádio e na TV. A pressa e a impaciência se estabeleceram firmemente nos nossos ouvidos. A indústria da música está atenta ao fenômeno. Os grandes hits de 2021 têm em média 2 minutos e 15 segundos. Na lista top five das músicas mais tocadas no Spotify no Brasil no ano passado, quatro têm menos de 3 minutos. Não muito longe, em 2000, Breathe, de Faith Hill, a canção de maior sucesso naquele ano, arrasta-se por 4 minutos e 10 segundos — que absurdo!

Corremos. Vivemos em permanente urgência. Não temos tempo a perder. Pesquisas com usuários de redes sociais constatam que o tempo médio de atenção sobre um conteúdo antes que uma opinião seja postada é de 19 segundos. Somos capazes de emitir um julgamento a respeito de uma informação ou uma análise num tempo inferior ao que levaríamos para fazer uma bola de chiclete.

O gatilho do mais recente movimento de aceleração foi, segundo especialistas em tecnologia, a consolidação do sucesso global do TikTok, hoje com mais de 1 bilhão de usuários. O TikTok é muito mais que ágil. É histericamente frenético. Embora a plataforma permita a publicação de vídeos de até 3 minutos, a extrema maioria tem 15 segundos, o limite fixado quando do lançamento do aplicativo, em 2016, pela startup chinesa ByteDance. Viciados na ligeireza do TikTok, passamos a buscar a mesma velocidade ao utilizar outros softwares.

Frases feitas, slogans emotivos e palavrório populista, por sua vez, terão potencial de reverberação rápida

É possível refletir acerca das implicações desse comportamento em áreas diversas da vida em sociedade, inclusive que impactos terá na democracia. Argumentações complexas, longas discussões sobre problemas intricados dificilmente encontrarão espaço no debate público. Frases feitas, slogans emotivos e palavrório populista, por sua vez, terão potencial de reverberação rápida. Eis o que temos.

É claro que demagogos profissionais não nasceram com o TikTok. A história política nacional registra vários casos, que não começaram com Getúlio Vargas “pai dos pobres” nem terminaram com Fernando Collor “caçador de marajás”. A novidade, agora, é a crescente indisposição para o contraditório civilizado como elemento indispensável de um processo irremediavelmente longo.

Neste sentido, o filósofo e cientista político norte-americano Jason Brennan, autor de Contra a Democracia, acredita que a quantidade de eleitores que se baseiam em dados para tomar decisões tende a encolher. Brennan desenvolveu pesquisas robustas para categorizar, num linguajar pop, três principais grupos de eleitores. O primeiro são os Hobbits, uma referência às criaturas criadas por J.R.R. Tolkien na série literária O Senhor dos Anéis. Hobbits são pacíficos e apegados à rotina, gostam de comer e ficar em casa. Brennan identificou como eles reagem a uma campanha eleitoral. Basicamente, é uma chateação, que, se desse para evitar, tanto melhor. Caso tenham de votar, na última hora fazem uma escolha qualquer, seguindo a indicação de alguém que pareça minimamente inteirado dos acontecimentos ou apenas de acordo com a onda coletiva. Os Hobbits são a grande maioria dos eleitores.

O segundo grupo é o dos Hooligans. Assim como os briguentos torcedores dos times de futebol ingleses, os eleitores Hooligans não perdem a oportunidade de criar encrenca com adversários políticos. Querem exterminar os que consideram inimigos, não se importam com fatos e dados, o que interessa mesmo é o combate. É um grupo pequeno e barulhento, que, como se sabe, tem crescido com a polarização acentuada pelas redes sociais.

O último e o menor dos grupos é o dos Vulcanos — na série Jornada nas Estrelas, os Vulcanos são alienígenas que vivem segundo a razão e a lógica. As pesquisas de Jason Brennan detectaram um número pequeno de eleitores que analisam programas de governo, avaliam números apresentados por candidatos e a viabilidade de suas propostas, tentam votar sem paixões.

Na esfera individual, ir contra o TikTokismo exige disciplina, dado que já nos habituamos a benefícios da vida acelerada

No meio da correria e da barulheira ininterruptas em que vivemos, há algo que os poucos Vulcanos possam fazer para “converter” Hooligans ou Hobbits?

Mesmo que pareça inútil, cabe aos eleitores racionais tentar empurrar as discussões políticas para zonas de baixa voltagem, em que seja possível argumentar, ouvir e falar com um certo nível de paciência, sem beligerância e com disposição para a troca intelectual. Convém sempre lembrar a reflexão do geógrafo e historiador grego Heródoto, que viveu no século 5 a.C.: “A pressa gera o erro em todas as coisas”.

Na esfera individual, ir contra o TikTokismo exige disciplina, dado que já nos habituamos — mesmo os não usuários do TikTok — a muitos dos benefícios da vida acelerada, como entregas da Amazon e do Mercado Livre em 24 horas, serviços de streaming ultrarrápidos, aplicativos de bancos que executam em poucos segundos operações antes demoradas. É compreensível, portanto, que a expectativa por celeridade se estenda a todas as áreas da vida.

O primeiro passo bem que pode ser um pequeno gesto elegante de protesto contra a audição ansiosa. Você pode, por exemplo, ouvir tranquilamente John Coltrane executar One Down, One Up, no álbum Live at the Half Note. É o solo mais longo de Coltrane. Dura 27 minutos e 39 segundos.

Kaíke Nanne é jornalista. Foi publisher nos grupos Abril, Time Warner e HarperCollins. Atuou como repórter, editor e diretor em diversas publicações, entre elas Veja, Época, Playboy, Claudia e Oeste