Trump e a guerra | Demétrio Magnoli
08/04/2017 18:22
Trump e a guerra | Demétrio Magnoli
Folha de S. Paulo
Na Síria, Trump causa sofrimento; na Coreia do Norte, ameaça segurança mundial
O livro preferido de Trump, "depois da Bíblia", é "A Arte do Acordo", de Donald Trump –hum, bem, de fato, do jornalista Tony Schwartz, o ghost-writer que o assina como coautor.
"Eu passei batom num porco", disse Schwartz durante a campanha eleitoral do ano passado, referindo-se ao best-seller publicado em 1987. "Creio que ele é tão inseguro que, se vencer e tiver acesso aos códigos nucleares, existe uma enorme possibilidade de que destruirá a civilização".
Schwartz quase certamente exagera, mas esse traço da personalidade de Trump descortina o que se deve temer na hora do acirramento das crises na Síria e na península coreana.
O ataque químico em Idlib "mudou muito" a atitude de Trump em relação a Assad.
"Estamos falando de um nível completamente diferente", declarou o presidente, enquanto sua embaixadora na ONU discorria sobre a necessidade de "agir por conta própria, quando as Nações Unidas fracassam em sua tarefa de atuar coletivamente".
O bombardeio punitivo americano à base síria de Shayrat se ajusta a uma das fórmulas enunciadas no livro de Trump: "proteja o seu lado fraco; o lado forte cuidará de si próprio".
A Síria é a ferida hemorrágica do legado de Obama. O abandono americano das correntes moderadas sírias condenou-as à irrelevância, entregando o comando da guerra contra o regime aos fundamentalistas.
O recuo de Obama em sua promessa de reagir militarmente ao primeiro ataque químico de Assad, em 2013, deixou um vácuo geopolítico, que foi ocupado pela Rússia.
Os EUA já não têm opções positivas na guerra síria. O bombardeio na quinta (6) não altera os rumos do conflito e amplia a tragédia humanitária. Mas Trump protege seu "lado fraco". Ele desvia a atenção das crises domésticas que desmoralizam seu governo, mostra-se "mais duro" que o antecessor, dilui as suspeitas de conluio com Putin e envia uma mensagem à China sobre a Coreia do Norte.
Na Síria, Trump só causa mais sofrimento ainda à população civil. Na península coreana, sua insegurança pessoal é capaz de ameaçar a segurança mundial.
A tática de negociação contida no livro consiste em maximizar insuportavelmente a pressão sobre o outro, até obter as vantagens pretendidas –uma receita primitiva de negócios que não deveria ser aplicada às relações internacionais. Trump aposta em misturar comércio e Coreia do Norte para obter concessões da China nos dois campos. É um caminho infalível para o desastre.
O regime norte-coreano ultrapassa linhas vermelhas. Testes de mísseis balísticos, junto com avanços na miniaturização de armas nucleares, logo colocarão o território americano ao alcance de suas ogivas. A solução óbvia teria efeitos catastróficos.
Bombardeando instalações nucleares da Coreia do Norte, os EUA deflagrariam um ataque a Seul, a capital sul-coreana, que se situa no raio de fogo da artilharia norte-coreana, além de possíveis lançamentos de mísseis contra a Coreia do Sul e o Japão. A China guarda as chaves de uma hipotética, difícil solução alternativa, que seria a contenção diplomática do programa nuclear norte-coreano.
"Se a China não resolver a questão da Coreia, nós o faremos", ameaçou Trump às vésperas de seu encontro com Xi Jinping, ao mesmo tempo em que seus porta-vozes exigiam do governo chinês um "comércio justo", uma senha clássica do protecionismo.
O acoplamento de temas de segurança estratégica e assuntos de ordem comercial anula a possibilidade de identificar interesses compartilhados, encurralando Xi Jinping num beco escuro. A China não trocará a submissão da Coreia do Norte por garantias sobre o livre comércio nem, muito menos, como sonha Trump, cederá duplamente à vontade da Casa Branca.
No lugar do acordo humilhante com um interlocutor esmagado, a arte trumpiana tende a produzir uma cisão irreparável. O porco de batom é o homem mais perigoso do mundo.